O passado e o futuro dos direitos autorais
Por Rafael Cabral
No meio de 2004, executivos da companhia japonesa NEC descobriram que andavam pirateando seus produtos e vendendo na China, e decidiram contratar alguém para investigar. Até aí nada de novo, um caso como tantos outros. A surpresa foi que a investigação da International Risk, especializada em coibir infrações de direitos autorais, não encontrou apenas alguns camelôs vendendo DVDs virgens falsificados ou pequenos grupos que usavam a marca, mas uma NEC inteiramente pirateada em Pequim. Com sede própria, investimento multinacional, publicidade nas ruas e executivos contratados que, além de ganharem bem, distribuíam o cartão da companhia a torto e direito pela cidade. Empresários piratas que, mesmo operando na ilegalidade, conseguiram gerenciar uma empresa gigante como a original.
O episódio, que abre o livro Piracy – The Intellectual Property Wars From Gutenberg to Gates, do historiador Adrian Johns, demonstra o nível de profissionalização que pirataria atingiu no século 21. ”A pirataria não engloba apenas o adolescente que baixa música no seu quarto, mas uma indústria global”, diz o pesquisador, que levantou a história das falsificações do século 17 até hoje.
Ao mesmo tempo, Johns acredita que “o argumento da democratização da informação, usado por piratas há séculos, agora se sofisticou”, principalmente por causa da “revolução causada pelas redes p2p”. O acadêmico da Universidade de Chicago acha que, “por causa das ferramentas que temos, esse discurso faz muito sentido”. Um defensor comedido de uma reforma nas leis de copyright no mundo, Johns conversou com o Link para uma matéria publicada na última segunda-feira (5). Abaixo você encontra a entrevista completa:
Como começou a pirataria? Quando esse ‘modelo de negócios’ foi criado? E qual o seu significado na época?
A pirataria é tão antiga quanto a escrita, e talvez até mais velha. Mesmo na Antiguidade, você pode encontrar falas de escritores, reclamando de interferências externas em outras obras e até de ‘roubos’ de ideias. Mas nem sempre essas questões sobre propriedade intelectual podem ser tomadas como pirataria. Na minha pesquisa, vi que os primeiros casos de pirataria começaram a acontecer no meio do século 17, na Inglaterra. Antes de 1600, essa prática era muito rara, se é que existia. Já em 1700, virou rotina. Seu surgimento provou que o mundo havia mudado, que não eram só algumas práticas rotineiras e casuais.
Tudo começou no mercado de livros. O ‘modelo de negócios’ era simples: pegar um livro de sucesso e reeditá-lo sem autorização, talvez com outra diagramação, em papel pior e com o texto simplificado. Essa reimpressão podia ser vendida por um preço bem menor que a original. Para outro público, que também se interessava mas não podia comprá-los. Já no século 18, encontramos piratas alegando que estão defendendo o interesse público, democratizando e barateando o acesso à cultura. O contraponto eram os oligarcas monopolistas que controlavam o mercado dos livros, que começaram a ser combatidos por essas pessoas.
Um pouco depois, a pirataria começou a se espalhar por todas as áreas e começou a briga, que dura até hoje, entre os piratas e os detentores do copyright.
Quais os grandes acontecimentos do nosso tempo, que podem mudar a maneira que pensamos sobre pirataria e direitos autorais?
São dois: a briga em torno do projeto Google Books e o furor por patentes nas indústrias de ciência e tecnologia (biopirataria, produtos farmacêuticos, genoma). O caso do Google retoma uma série de questões, levantadas há décadas, mas que não passavam de especulações. A maior delas tem a ver com fazer que o conhecimento produzido há milênios seja acessível no futuro. O plano do Google de digitalizar todo esse conteúdo e torná-lo acessível a qualquer lugar (e obviamente lucrar com isso), só tem o copyright como barreira. Se o caso for analisado pela Suprema Corte, pode ser tornar o mais importante caso de copyright na história dos Estados Unidos, com o potencial de acabar com uma noção que conhecemos por quase 250 anos.
Já com as patentes farmacêuticas, não há um caso específico, mas vários: todos que envolvam a chamada biopirataria. As controvérsias em torno disso vão moldar a maneira como a propriedade intelectual é entendida em uma economia globalizada. O assunto tem forte apelo emocional e político, porque quando comida e remédios estão envolvidos, a vida é colocada em risco.
O que mudou dos tempos de Gutenberg para os de Bill Gates? O que a internet significa na ‘grande história’ da pirataria?
A grande mudança foi a proliferação de mídia. Desde 1850, as tecnologias de arquivamento e replicação foram multiplicadas: fotografia, gravadores, rádio, fita, vídeo e agora arquivos digitais. Cada um desses desencadeou um tipo de pirataria e novas estratégias para combatê-la. Porém, o surgimento das redes p2p causou uma revolução. Com o digital, quase não há custo para copiar e distribuir. Além disso, mexe com questões como a privacidade, que protege os piratas, e esbarra nas legislações diferentes de cada país (com a internet, afinal, o país deixou de ser uma fronteira real). Ao mesmo tempo, ficou mais fácil monitorar a ação dos piratas. O futuro da pirataria surgirá da tensão entre esses dois extremos.
Já no conceito da pirataria, aconteceu uma evolução e não uma revolução. Os argumentos dos piratas de hoje são mais firmes, mais ideológicos. Com a possibilidade de copiar e distribuir tão rapidamente e pelo mundo todo, sem gastar quase nada, os piratas modernos parecem mais integrados ao ‘estado natural das coisas’. Se a informação quer ser livre, liberá-la parece fazer mais sentido do que aprisioná-la, principalmente com as ferramentas que temos.
A cultura digital é mesmo tão diferente, ao ponto de precisarmos de regras diferentes para lidarmos com ela? Ou você acha que essa coisa de pegar informações “emprestadas” fez, sempre, parte do processo criativo – e a tecnologia de hoje só facilita isso?
Acho que leis diferentes são necessárias, mas não só por causa do ambiente digital, mas porque todas as práticas das indústrias, principalmente as ligadas ao entretenimento, mudaram. Até é possível julgar a realidade com as regras que temos, mas não acho que é isso que vai acontecer. Acredito que novas leis vão ser criadas, adaptadas a essa nova realidade.
Não se sei se pegar (ou roubar) informação faz parte da natureza humana, mas é difícil imaginar uma sociedade em que as pessoas não o fazem (e se fizessem, não seria uma organização que chamaríamos de ‘social’, com certeza). Afinal, ‘roubamos’ algo em cada pequeno ato.
No seu livro, você diz que as batalhas entre a indústria do entretenimento contra Pirate Bay e Napster são muito similares àquelas que aconteceram no passado, e que “devemos fazer uso dessa experiência”. Qual a semelhança?
Essa retórica libertária que você na boca dos criadores do Pirate Bay não é, em nada, nova. Podemos ouvir as mesmas alegações na boca daqueles que defendiam os primeiros falsificadores de livros. Mas, apesar das repetições, o argumento deles continua válido. As práticas antipirataria, desenvolvidas a partir do Iluminismo, são repetidamente levadas longe demais.
Esforços para barrar a criatividade alheia – seja com livros reimpressos, sinais de rádio ou arquivos de mp3 – provaram-se contraproducentes. Principalmente porque sempre foram radicais demais, arriscando até direitos como o da privacidade. Com essa atitude, a indústria costuma provocar uma reação pior, para eles, do que era a pirataria que combatiam no início. É mais ou menos isso o que vemos hoje, com a indústria do entretenimento.
No século 17, as editoras tentaram chutar os piratas para fora de seu negócio, mandando fiscais inspecionarem toda e qualquer livraria. A resposta dos piratas foi tão grande e hostil que culminou, simplesmente, com o fim da noção de propriedade que existia até então – substituída hoje pelo copyright, que tem começo e fim.
Com o enrijecimento desse combate e com o policiamento do que as pessoas fazem na web, a indústria de hoje pode enfrentar algo semelhante – e ela mesma vai sair prejudicada. Existe a possibilidade, também, que a sociedade como um todo comece mesmo a acreditar que a propriedade intelectual só possa sobreviver se amparando nos valores de open source e cultura livre, pregados com o início da era digital. E se isso acontecer, não é difícil pensar que os políticos podem chegar a um consenso, repensando radicalmente a noção de autor, patentes. O que aprendemos com a História é que mudanças radicais podem ser acionadas por ações mundanas. Como baixar uma música.
“O confronto entre a pirataria e a indústria de propriedade intelectual”, você escreveu no livro, “pode acionar o gatilho de uma transformação radical na relação entre criatividade e comércio”. Pode explicar essa declaração?
Acredito a noção que temos de copyright e patentes fazia sentido na época que foi criada, durante a Revolução Industrial, mas não faz mais com o trabalho criativo de hoje. As patentes do genoma humano, por exemplo, parecem não caber na atual legislação, pois levantam um debate ético que pode levar a reavaliação do que esse ‘direito de autor’ quer dizer.
Além disso, a prática se tornou tão rotineira e o enrijecimento das leis tão drástico, com invasões da privacidade de milhares de cidadãos mundo afora, que uma hora a corda vai estourar. Mas não sei para que lado, pois também podemos ver a internet se fechando, sendo forçada a mudar a sua estrutura. Como isso seria feito, eu não sei, mas é possível que tentem.
Como você vê a ‘ética do remix’ que veio junto com a internet? O conceito de autoria mudou por causa dela?
Esse é um problema que qualquer arte que se apropria de outras enfrenta. E em alguns casos, o copyright pode acabar servindo de censura. Documentários podem ser proibitivamente caros em um mundo em que quase toda imagem tem dono. Porém, não acredito no fim da ideia que temos de um autor – afinal, alguém que faz um remix é também um autor. A internet vai acabar forçando que voltemos ao conceito original de copyright, que era extremamente justo e balanceado, sem a interferência das indústrias do entretenimento: um termo de 14 anos renováveis por outros 14, somente para o autor. Não me incomodo em pagar o autor, mas não acho justo que eu pague para seus netos e bisnetos, muito menos às empresas que são donas de seus direitos.
O comportamento dos nativos digitais, que já nascem baixando música e filmes, pode nos levar para essa renovação das leis?
Na verdade, o fenômeno do pirata enfurnado no próprio quarto é bem velho. No começo do século, adolescentes pirateavam partituras em casa. Em 1920, eles criavam as suas próprias rádios piratas. Em cada um desses casos, eles abraçavam uma ideologia anti-monopolista, “pela liberdade”. O que aconteceu quando eles cresceram, no entanto, não é um fenômeno simples. Em São Francisco, essas rádios viraram pequenas companhias que continuaram operando com um conceito anti-establishment – e foi esse o espírito que moldou o atual Vale do Silício. Outros amadureceram e esqueceram essas ideias.
Acho que o mesmo acontecerá com os nativos digitais: alguns manterão o mesmo espírito e podem moldar algo novo. Já a maioria vai se adaptar ao mundo. A questão é: Quanto do espírito da cultura livre eles vão reter? É impossível prever. Mas como as táticas de policiamento na internet se provaram inúteis, acredito que essa noção de que a “informação quer ser livre” pode se tornar um senso comum.
Como você vê o surgimento de Partidos Piratas pelo mundo? São as primeiras organizações políticas da geração do remix? Essas manifestações pelo ‘direito de ser pirata’ são novas?
É um engajamento político forte, mas não o primeiro. Para ver os pioneiros, você precisa olhar para as campanhas pró-radios piratas, nos anos 60. Mesmo nos anos 20, as rádios piratas já apostavam em slogans parecidos com os que vemos hoje, dizendo que os cidadãos tinham o “direito” de transmitirem o que quisessem, sem se importarem com propriedades e concessões.
Porém, eu não vejo os Partidos Piratas como sérios na defesa desses direitos, e acho que não serão um fenômeno duradouro. O futuro da política dos piratas será a assimilação por instituições políticas convencionais. É muito provável – ou inevitável – que esses partidos maiores, em menos de uma década, tenham que tomar posições fortes sobre a questão do IP e da privacidade na web. Da mesma forma que toda grande agremiação, por exemplo, hoje tem que falar sobre o meio ambiente. Os ‘verdes’ mostram o caminho que os piratas seguirão.
Partidos de uma causa só nunca serão muito influentes, mas podem ajudar que essas causas sejam incorporadas ao programa de partidos maiores. É um problema complexo. Lawrence Lessig, o grande defensor do Creative Commons nos Estados Unidos, mudou o seu campo de atuação para a reforma do sistema político norte-americano, e nós podemos ver a razão.
A pirataria, de alguma forma, cria novos mercados?
A pirataria tem uma grande força hoje simplesmente porque a informação se tornou o componente dominante da economia global. Tudo que envolva design faz parte da economia da informação, então a pirataria atinge quase todos os produtos, de motocicletas ao Pokemon.
Ela serve, sim, para quebrar monopólios e criar novos mercados. Aliás, algumas práticas são rotuladas como piratas justamente por quebrarem com o interesse de grandes corporações e das maiores forças econômicas. Grande parte da música pop não de hoje não existiria se respeitássemos todas as leis de direitos autorais. Os pioneiros do download, também, não teriam criado o modelo de negócio da música digital. Eles poderiam até criar uma alternativa sem corromper as leis, mas, sem a pirataria, nós nem teríamos conhecido suas ideias.
Abços
Claudia Nunes
Nenhum comentário:
Postar um comentário